Doze Meses para Todos
Mais conhecido como “praticagem”, o Programa de Estágio Embarcado (PREST) é exigência da Convenção Internacional sobre Padrões de Instrução, Certificação e Serviço de Quarto para Marítimos (STCW), de 1978, da Organização Marítima Internacional (IMO). Aqui no país, a Lei do Ensino Profissional Marítimo, de 1986, incorporou o disposto nessa convenção, delegando à Marinha do Brasil a responsabilidade integral pela formação dos oficiais de marinha mercante. A supervisão dessa fase de treinamento, a praticagem, é atribuição da Diretoria de Portos e Costas (DPC).
Até 2010, o período mínimo exigido de estágio para a aquisição da carta de oficial de máquinas era de 6 meses. A Conferência de Manila sobre a STCW, ocorrida naquele ano, porém, atualizou esse tempo para 12 meses. No mesmo ano, a Comissão Coordenadora dos Assuntos da IMO (CCA-IMO) promoveu essas e demais alterações necessárias no Programa do Ensino Profissional Marítimo (PREPOM) da DPC, de forma que a formação dos oficiais no país ficasse em conformidade com as novas regulações internacionais, dentro do prazo limite estabelecido: 1º de janeiro de 2016.
O então Praticante de Oficial de Máquinas (POM) Cunha, egresso de 2015 do Centro de Instrução Almirante Graça Aranha (CIAGA), pela Turma Capitão de Longo Curso (CLC) José dos Santos Silva, concluiu o seu PREST, na sexta-feira, dia 23 de setembro, com apenas 6 meses. Ele foi o primeiro de sua turma a terminar essa etapa. Isso, porque as novas regras valem, somente, para as turmas de maquinistas que ingressaram na EFOMM a partir de 2014. Assim, Cunha é o primeiro dos últimos maquinistas a realizar o estágio em 6 meses.
Apesar do que pode parecer, no entanto, o período que ficou embarcado foi suficiente para ele adquirir amplo, completo e singular treinamento. Agora, já Segundo Oficial de Máquinas (2OM), Cunha, gentilmente, compartilhou conosco os detalhes dessa importante fase.
Processo Seletivo
O oficial foi aprovado num dos primeiros processos seletivos abertos no início desse ano. Em março, a empresa de gerenciamento de tripulação V-Ships ofereceu 4 vagas para POM, nos navios da frota que gerenciava. Poderiam concorrer à elas tanto praticantes de EFOMM, quanto dos demais cursos de adaptação que estivessem aguardando na fila para estágio.
Algumas etapas do processo seletivo variaram conforme critérios do armador o qual a tripuladora escolhesse para o praticante embarcar. No entanto, todos passaram por uma mesma etapa de seleção curricular.
De atuação global consolidada, esta foi a primeira vez que a empresa V-Ships ofereceu vagas para estágio, no Brasil. Resultado de esforço empreendido por uma comissão de alunos junto do Departamento de Cursos e Estágio — com designação direta do Comando do CIAGA –, a tripuladora é uma das companhias de navegação que passaram a cooperar para diminuição do tempo de espera na fila de praticagem.
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Selecionado o currículo, Cunha foi encaminhado à armação grega Super-Eco. A própria armação realizou uma entrevista. “Foi direto com o armador da Super-eco, pelo Skype; a gente conversou rapidamente em inglês, nada técnico, ele queria só me conhecer”, ele contou.
Embarque
A notícia de que havia sido aprovado na segunda etapa foi recebida por telefone. Após isso, foi uma questão apenas de documentação a ser resolvida antes de embarcar. “Em relação ao que aconteceu com outros praticantes, da minha seleção ao embarque foi tudo muito rápido, umas 3 semanas; eu precisei só de um tempo para retirar o passaporte”, o recém-oficial revelou.
Ele embarcou no dia 2 de abril, no Porto de Suape, em Pernambuco, no Navio-tanque (NT) Rosa Tomasos, afretado pela Petrobras, que possui 183 metros de comprimento, 27 metros de boca e um porte bruto de mais de 37000 toneladas: “A empresa pagou tudo, embarque e desembarque; foi muito boa quanto a isso.”
Primeiros Dias e Adaptação
A adaptação segundo ele foi difícil nos primeiros dias. O barco bahamense, de 2003, chegou no Brasil apenas no final de 2015. A sua equipe seria a primeira de brasileiros a embarcar. “Essa questão de wifi, TV a cabo, sinuca, por exemplo, que a gente tem mais gosto, chama de conforto, eles não; tinha uma TV que ninguém usava antes, a gente [da turma de brasileiros] é que colocava alguns filmes no pendrive para assistir”, observou. “Éramos 8 brasileiros a bordo, então sempre depois do horário de trabalho, nos reuníamos e conversávamos.”
No início, foi realmente um baque
A alimentação também foi uma dificuldade: “No início, foi realmente um baque. Na primeira semana, ‘foi arroz e peixe’; para brasileiro isso é completamente diferente”. No entanto, havia academia: “Afora os encontros, que a gente [da turma de brasileiros] ficávamos conversando, tinha a academia, que era algo bom, malhar.”
O choque cultural era grande, também: “Era um navio com pessoas da Grécia, Romênia, Polônia, Indonésia, Filipinas… Isso dificultou um pouco [os relacionamentos], no começo”. No entanto, ele revelou que a comunicação em inglês não chegou a ser um problema considerável.
Os praticantes limpavam os próprios camarotes e roupas. “Afora os oficiais e chefes, os praticantes, a gente mesmo, que limpávamos os nossos camarotes; as roupas, nos primeiros quatro meses, a lavanderia ficava aberta de segunda a segunda; com a troca do chefe, abria depois só aos sábados e domingos; já aconteceu de eu perder os dias e ter que lavar no próprio camarote”, contou.
Rotina e Escala
A rotina, segundo o praticante, era ‘tranquila’. Ele realizava as suas principais atividades dentre 0800 e 1700, na maior parte dos dias. Nesse intervalo, havia pausa para o lanche da manhã às 1000, para almoço às 1200, com descanso até as 1300, e para o lanche da tarde, às 1500. O café da manhã ocorria de 0700 às 0800.
A praça de máquinas do navio é desguarnecida. Dessa forma, após as 1700, ele conta que ficava um oficial de sobreaviso até as 0800 do dia seguinte: “Se tivesse algum alarme, se desse para [o oficial] solucionar [sozinho], ele solucionava, se acontecesse alguma coisa muito grave, descia todo mundo para a praça de máquinas; aconteceu algumas vezes, o que é normal”.
Já nos finais de semana, era reduzido o serviço de 0800 às 1200. Nas subidas para Manaus, os quartos de serviço são obrigatórios.
A escala da V-Ships, segundo Cunha é de 60×60. Como ele não trocou de navio, revezou por 2 turmas. “No final agora eu voltei para a primeira turma que eu estava; foram duas turmas com muita afinidade.”
Incidentes
Cunha conta que, como praticante de máquinas, viveu três situações de incêndio a bordo, sendo o maior deles no MCP: “Foi algo inesperado; a gente ia para Belém, começou um barulho muito forte na praça de máquinas, saia fogo pelos sopradores auxiliares, pela turbina e o motor parou; gastamos apenas um extintor para combater, mas foi um momento de muita tensão.”
Aprendizado
Muitos afirmam que os navios mercantes são todos modernos; isso não é verídico
Para o maquinista, a experiência foi diferente do que imaginava, na EFOMM: “Muitas pessoas afirmavam que os navios de marinha mercante eram todos muito modernos; isso não é verídico”. Ele afirma que passou por momentos difíceis, que, inclusive, o fizeram querer desistir: “Eu fiz seis meses direto, então, foi [ainda mais] difícil”.
Apesar disso, o oficial ressaltou que houveram também muitos momentos positivos: “Consegui fazer uma outra família, no final; depois de todo esse sacrifício, vejo que foram testados muitos dos meus limites, até onde eu conseguiria chegar em questão de cansaço, de trabalho; eu vejo a minha passagem por essa embarcação como algo muito positivo, me fez ter um leque grande de aprendizagem.”
O importante na praticagem é o aprendizado
Para terminar, Cunha relata que muito se alegrou, dia 23, ao desembarcar, porque percebeu o quanto havia aprendido. “Hoje eu consigo ser um oficial preparado; posso dizer que sou uma pessoa com mais garra”, declarou. Para ele, o importante, na praticagem é o aprendizado: “No final de tudo, o que basta é o aprendizado”.