O Jornal Pelicano teve a oportunidade e o prazer de entrevistar a 1ª Oficial de Náutica Laila de Sá, 36 anos, ex-aluna do Centro de Instrução Graça Aranha (CIAGA), onde estudou do ano de 2002 ao ano de 2004.
Como foi a sua transição de praticante para oficial? E quais foram as diferenças mais marcantes entre ambas as rotinas?
R: Eu pratiquei de março de 2005 a março de 2006 em um Navio Tanque. Era o meu xodó. A transição foi bem tranquila porque eu não voltei para a mesma embarcação já que sempre rola aquela situação onde todos a bordo ainda te enxergam como praticante e não como oficial. Então, quanto a isso, eu não tive problemas. Recomecei em outro navio, um pouco diferente do que eu estava acostumada, com menos recursos, o que eu tive bastante dificuldade de me adaptar. E já passei por uma docagem na Argentina logo de cara. Foi difícil, mas aprendi muito. A guarnição de convés era um pouco mais velha e a equipe tinha dificuldade de receber ordens de uma oficial mulher com seus 22 anos. Mas nada como uma boa conversa para lidar bem com isso. Para criar confiança é preciso sinceridade. Conquistei a equipe apenas por ser eu mesma e em pouco tempo, éramos todos amigos. Só depois de um embarque de 4 meses nesse navio e um período de 56 dias de folga, eu retornei para a embarcação que eu tinha praticado, já exercendo a função de 1ON. A tripulação ainda era praticamente a mesma da época da praticagem, e por eu ter chegado já como 1ON, eles me respeitaram ainda mais por isso. Claro que a vida de praticante é corrida, você é cobrado o tempo todo, faz diversas coisas ao mesmo tempo, você está ali para isso, para aprender a rotina do oficial. E quando você vira oficial, se torna responsável pela execução do seu trabalho e por todas as vidas que estão contigo naquele navio.
Conte-nos um pouco sobre as empresas nas quais você já trabalhou.
R: Eu só tive a experiência de praticagem e os primeiros anos de carreira numa empresa de Petróleo, onde fiquei até início de 2009. Lá, eu passei por mais 4 navios tanque, fiz outras docagens no exterior, mas a grande parte do tempo foi na cabotagem, o que eu também gostava muito. Por ter feito uma viagem longa para o Oriente Médio e sem ter perspectiva de desembarque quando chegasse ao Brasil, me senti um pouco ultrajada com a situação. Eu trabalhava, mas não tinha uma folga decente. A maioria dos meus amigos de turma já estavam no Offshore há muito tempo e me incentivaram a deixar a cabotagem. Foi aí que resolvi arriscar e vir para o Offshore onde estou até hoje. Em 2009, você arrumava emprego até “na praça” se quisesse. Passei 1 semana em Macaé fazendo o curso básico de DP por minha conta, sem nunca ter tido contato com o sistema antes, porque me disseram na época que era pré requisito para vir para o Offshore. Em poucos dias, já tinha 4 entrevistas de emprego marcadas, era só escolher a melhor empresa. E estou há 11 anos na mesma empresa, imediatei 2 embarcações PSV e hoje trabalho em um Navio Especial de Construção Subsea que é o grande orgulho da minha vida.
Qual é o maior motivo de, hoje, você estar no offshore e não na cabotagem?
R: A certeza de saber quando eu vou pro mar e quando eu vou voltar pra casa. Mas como aqui existe essa vantagem, também existe a desvantagem. Se eu ainda estivesse na cabotagem, hoje eu já estaria comandando, o que demora muito para acontecer no Offshore. Mas será que eu estaria feliz?
Como é o seu contato com o seus superiores?
R: É uma parceria, mas nem sempre foi assim. Demorei muito para entender determinadas coisas, eu era muito nervosa, batia de frente, brigava por tudo, não tinha diplomacia nenhuma para lidar com as situações. Fui trabalhando isso dentro de mim e hoje sou bem mais tranquila. Você precisa ter uma equipe boa, se não o trabalho não evolui. E ter um bom relacionamento com os seus superiores é essencial.
Antes de embarcar como praticante e posteriormente como oficial, você se sentia capaz de exercer a sua função?
R: De maneira nenhuma. É muita insegurança porque, na praticagem, você está aprendendo a ter responsabilidades, é apenas um treino. Depois que a sua “Carta” está na sua mão, o jogo começa à vera. O erro passa a ser imperdoável. Isso não quer dizer que você não vai errar. Eu erro até hoje. A vida no mar é um eterno aprendizado, uma melhoria contínua. Você termina a praticagem e vê que na verdade, você não aprendeu quase nada. Os navios são diferentes, as pessoas, as experiências, as manobras são todas diferentes. Se aprimorar em uma determinada atividade é um processo que passa por milhares de pequenos fracassos e a magnitude do seu êxito vai se basear em quantas vezes você não conseguiu fazer determinada tarefa. Nós só podemos atingir a excelência em algo se estivermos dispostos a errar. Se você se recusar a correr o risco, não estará nunca disposto a ser bem-sucedido.
Quando você era praticante, se sentia a vontade para fazer perguntas sobre algumas tarefas para a tripulação?
R: Claro. Tive muita sorte de ter oficiais instrutores excelentes e que tinham prazer em ensinar, o que me tornou também uma oficial disposta a ajudar e eu tive dezenas de praticantes ao longo da vida. Tenho certeza de que todos eles aprenderam muito comigo e vice-versa.
Na sua posição de ex aluna, consegue resumir o que de fato precisa-se saber para um praticante ir preparado para a praticagem?
R: Inteligência emocional é o primeiro requisito e com certeza um dos mais importantes. Você tem que saber lidar com as frustrações e com as diferenças. Tenha em mente que a Escola te prepara tecnicamente, mas é a bordo que você vai realmente aprender. Então, tenha coragem, força de vontade e dedicação. Leve em conta a hierarquia, mas saiba que a sua classificação na Escola de nada adianta a bordo se você não for humilde o suficiente para enxergar que você não sabe nada. O homem que acha que sabe tudo, não aprende nada novo. É impossível aprender algo se não a partir da ignorância. Quanto mais admitimos não saber, mais criamos oportunidades de aprender e isso é maravilhoso. E todo dia você vai aprender algo novo, portanto, aproveite todas as oportunidades.
Passou por alguma situação constrangedora a bordo, seja por ser mulher ou até por diferenças culturais?
R: Diversas vezes. Já fui alvo de difamações/calúnias por se mulher. Já sofri assédio moral, assédio sexual. É até algo pesado de se dizer, mas infelizmente a minha realidade foi essa por diversas vezes ao longo da carreira. Gostaria muito de não ter passado por muitas situações e desejo que ninguém passe. É ultrajante, você se sente mal por algo que você não fez ou que não teve culpa.
Qual o conselho que você daria para quem ainda está no período de formação?
R: Aproveitem o período acadêmico da melhor maneira possível. Sejam gentis consigo e com os outros. Não se cobrem tanto. Há tempo para tudo nessa vida. E nunca se esqueçam: quando você pensa antes de reagir, você acaba fazendo escolhas muito melhores. Levem isso para a vida de vocês e sejam felizes na carreira que escolheram.