Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)  formam um conjunto de 17 metas globais estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, representando uma chamada a todos os países – dos mais pobres aos mais ricos – à promoção de prosperidade aliada à proteção do planeta. Elas englobam a erradicação da pobreza e da fome, redução da desigualdade social, aumento da qualidade educacional e o tema da nossa reportagem: igualdade de gênero.

A Organização Marítima Internacional (IMO) não poderia ficar de fora dessa empreitada. Sendo a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) especializada nas questões técnicas referentes à Navegação Comercial Internacional, a IMO estipulou como tema do Dia Marítimo Internacional de 2019 a temática “Empoderando mulheres na Comunidade Marítima”, neste contexto em prol de, justamente, aumentar a consciência da importância da igualdade de gênero em acordância com a 5ª Meta dos ODSs, ressaltando, assim, a importância da contribuição das mulheres em todo o setor marítimo, como pronunciado por seu Secretário-Geral, Kitack Lim:

Capitã Hildelene – Primeira mulher do Brasil a comandar um petroleiro.

“Esse tema dará a IMO a oportunidade de trabalhar com diversas partes marítimas interessadas em atingir os ODSs – particularmente o 5º -, alimentando um ambiente em que mulheres sejam identificadas e selecionadas para oportunidades de desenvolvimento de suas carreiras na administração marítima, em portos e em instituições de treinamento, além de promoverem mais diálogo acerca da igualdade de gênero no espaço marítimo”.

Realmente, a discussão sobre a presença feminina no mercado vem em momento propício, dado que as mulheres representam cerca de 39,3% das ocupações regulares de trabalho e, num contexto de trabalho embarcado, apenas 2%.

Para uma melhor discussão sobre o tema, o Jornal Pelicano conversou com a Praticante de Náutica Mylena Jones e as Oficiais de Náutica Laila de Sá e Luana Veloso, e fez algumas perguntas referentes à questão. Acompanhe as perguntas:

  • A IMO escolheu como tema de 2019 a temática o empoderamento feminino na comunidade marítima. Como você, mulher, vê a importância dada pela Organização a vocês?
  • Há relatos de situações bem pesadas enfrentadas tanto na praticagem quanto quando oficial. Você enfrentou alguma coisa do tipo? Algum preconceito por, simplesmente, ser mulher ?
  • De todos os marítimos do mundo, apenas 2% são representados por mulheres. Como você vê a apresentação desse dado? Por que há tão poucas mulheres no ramo? A questão tradicional – em que mulher é mãe e tal perfil não ‘combina’ com essa profissão – é o principal motivo pra esse número?
  • Como você acha que os homens podem ajudar na recepção de mulheres a bordo? Você acha que há algo que possa ser feito pelo sexo masculino para melhorar a convivência com as mulheres em embarcações?
  • Você teria alguma mensagem de incentivo às mulheres que tem dúvidas sobre desbravar ou não a carreira mercante?

 

Respostas da MYLENA JONES – Praticante de Náutica

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Mylena Jones – Praticante de Náutica.

1ª Pergunta: Realmente, é um grande incentivo pra nós, mulheres, investirmos nessa carreira. Se a Autoridade máxima internacional da marinha mercante vê que tem espaço pra nós e que temos que ter o mesmo respeito que qualquer outro marítimo, isso já demonstra que os pensamentos conservadores já estão ficando ultrapassados. Além de incentivar as mulheres, incentiva também os homens da área a ter mais confiança e nos respeitar. Já é um grande avanço ter o apoio da IMO.

2ª Pergunta: Graças a Deus nunca passei por nenhum tipo de preconceito a bordo. Minha tripulação já está acostumada a ter mulheres a bordo. De 17 tripulantes, 4 são mulheres. Parece pouco, mas a maioria das embarcações são formadas com todos os tripulantes homens, no máximo 1 ou 2 mulheres. O fato de ter uma imediato mulher ajuda bastante a ter um respeito maior com as atitudes e convivência a bordo. Aqui também a subchefe é mulher, então somos as mulheres no poder (risos).

Infelizmente sei de uma história que aconteceu com uma amiga que morava comigo na EFOMM, e ela teve que exercitar muito sua paciência pra passar pela situação sem se comprometer. O navio dela só tinha ela de mulher. Infelizmente ela teve que engolir alguns “sapos” por ser ainda uma praticante e o preconceito ter vindo de um comandante. A carreira dele está feita, a dela ainda está começando.

3ª Pergunta: Realmente, 2% é um número muito pequeno. Mas tenho certeza que esse número vai crescer. Marinha Mercante nunca foi muito conhecida, e, aqueles que tinham certa familiaridade, era porque tinham algum parente na área. Hoje em dia qualquer um pode virar marítimo. Os 3 anos que vivi na EFOMM pude perceber o número de mulheres que passavam no concurso, e esse número só aumentava. Isso só mostra que esse ambiente que era praticamente exclusivo para homens terá que se acostumar com a gente, e muito bem acostumado!

Mas sim, eu também acredito que esse número não irá crescer tanto porque grande parte das mulheres, em certo ponto da vida, querem ter filhos e acabam desistindo da profissão. Até porque, como seria criar uma criança onde a mãe fica um mês embarcada e o outro em casa? Se alguém souber como fazer isso de maneira bem sucedida, me passe o bizu. Nunca se sabe!

4ª Pergunta: Uma vez, o marinheiro aqui do barco disse pra mim “as atitudes que eu tenho aqui a bordo eu penso como se estivesse num ambiente com a minha mãe, minha irmã ou minha esposa”. Até brinquei dizendo que ele estava me comparando com a mãe dele. Mas só de ter esse pensamento já faz toda a diferença. Que homem iria gostar de sua família num ambiente onde as pessoas não os tratassem com respeito? Onde os assuntos fossem só coisas pejorativas?

Aqui, a bordo, nada mais somos que uma segunda família. Pelo menos eu penso assim. Se a gente não se respeita, serão 28 dias de desconfiança. Chega um momento que a sincronia está tão defasada que pode gerar até mesmo um acidente.

Então acho que o pensamento é esse, tratar como se todos nós, independente de ser homem ou mulher, fôssemos uma família.

Mylena Jones – Praticante de Náutica.

5ª Pergunta: Meu conselho é: dificuldades e preconceito nós estamos propensos a passar em qualquer lugar. Seja na sua escola, cursinho, trabalho, na rua, no ônibus ou no bar. Se você tiver a oportunidade de mostrar o seu caráter, isso com certeza falará mais alto. Não tenha medo de seguir seu sonho por causa de terceiros. Só você é responsável pelo seu futuro, ninguém mais. Mas também, pra chegar até onde chegou, muitas pessoas fizeram parte. Isso eu falo por mim, mas creio que muitas pessoas têm esse reconhecimento. Ajuda é sempre bem vinda. Eu ainda acredito num mundo onde as pessoas reconhecem o seu trabalho e seu valor, independente de cor, raça, gênero ou opção sexual. Acho que assim conseguimos crescer tanto pessoalmente quanto profissionalmente.

Espero que eu consiga agregar alguma coisa positiva na sua vida.

 

LUANA VELOSO – Oficial de Náutica

A oficial Luana Veloso também respondeu às perguntas. Confira abaixo:

2ª Pergunta: No meu caso, eu nunca enfrentei uma situação pesada na minha praticagem e, até então, como oficial em relação a preconceito a meu ver. Mas o preconceito, ele existe. Não é tão claro assim, mas ele existe em certos comentários, em certas brincadeiras. Piadas vão existir sempre. No geral, a tripulação respeita; aceita muito melhor a presença feminina.

O que eu acredito é que o acesso, tanto à Marinha Mercante quanto ao meio militar, esteja melhor. Na época em que fiz o concurso, tem 5 anos mais ou menos, a gente era restrita a EFOMM, AFA e EEAR. Não tínhamos opções a nível no Exército. Desde que cursei a EFOMM pra cá, evoluiu muito para a parte feminina a aceitação. Eu acredito que tenha muitas mulheres que, talvez, não se vejam nesse meio por que a maioria é homem e que elas mesmas subestimem a própria capacidade . Não sei se é por medo ou pelo acesso não ser tão simples, por que tem Escola de Formação em Belém e no Rio. Existem muitos estados que não têm curso preparatório. Começa por aí.

Luana Veloso – Oficial de Náutica.

3ª Pergunta: Eu acredito que tenha muitas que confundam o ser mãe e esposa com o meio profissional. Ela pode ser uma boa profissional, mãe e esposa. Mas, acredito eu, a maioria não pensa dessa maneira, por que não é fácil ser Oficial da Marinha Mercante, abdicar de muita coisa, momentos com a família…

4ª Pergunta: O que eu acho que os homens podem fazer para melhorar a recepção das mulheres a bordo é controlar o que é conversado, ou seja, não falar certos  assuntos nem certas coisas na frente da mulher, porque deixa a gente constrangida. É saber e entender que existe uma mulher ali. Eu, por exemplo, não tenho esse problema, porque na minha tripulação são 27 homens e só eu de mulher. Eles respeitam. Os assuntos que são falados eu posso participar. Não preciso ficar calada. Mas se existissem assuntos a mais na minha presença, eu ficaria constrangida e iria me retirar. Mas também tenho que saber me portar. Como é um meio masculino, não tenho que estar em tudo que eles estão. Existem momentos de compartilhamento dos homens. No almoço, na janta , no café, a gente conversa assuntos comuns. Não tem assunto a mais; não tem assunto de mulher, o que fizeram na noite passada. Então, os homens têm que limitar e restringir o que tratar na frente das mulheres, e as mulheres, por sua vez, se portarem e respeitarem o espaço dos homens.

5ª Pergunta: Mensagem de incentivo é algo bem relativo. O que tenho pra dizer é que não é fácil, mas é uma vida que vale a pena, na minha opinião. É um mundo completamente diferente do que a gente tá acostumado, mas – pra quem gosta de desafios – é uma vida perfeita. Eu me desafio todo dia embarcada. Na realidade, eu digo que um dia embarcada é como uma semana, porque você realmente vive manhã, tarde e noite. Novos objetivos, novos desafios. É uma vida que vale a pena, financeiramente falando -comparado ao emprego de Terra-. Não tenho pais empresários; meu pai é pedreiro e minha mãe cursou o Ensino Médio. Eu creio que tudo pelo que a gente batalha muito para conseguir, o valor é maior. Não é um caminho fácil nem simples. “Ah… Agora quero ser da Marinha Mercante. Pronto! Então, amanhã posso fazer um cursinho qualquer, pago e acabou”. Não! Você faz um concurso, passa por um processo seletivo, fica 3 anos em internato – no caso da EFOMM. Eu me dediquei muito. Pra tudo isso, a gente dá valor.

 

Respostas da LAILA DE SÁ – Oficial de Náutica

Laila de Sá – Oficial de Náutica.

1ª Pergunta: Eu vejo essa atitude como uma forma de encorajamento, uma maneira de abrir novas portas no setor marítimo que vai permitir que mulheres e homens adquiram alto nível de competência que o setor exige e de igual pra igual. A ascensão do comportamento feminino é uma das formas para se atingir o patamar de igualdade e respeito entre homens e mulheres. É necessário mostrar que nós mulheres devemos ter as mesmas oportunidades e direitos. Nós podemos ocupar cargos de liderança, pois temos as mesmas capacidades que os homens.

2ª Pergunta: Sim, sofri muito preconceito no início da carreira lá em 2005 enquanto praticava, e anos depois como Oficial ainda ouvia piadas de péssimo gosto de pessoas que se referiam a mim, me diminuindo de certa forma por eu ser jovem e por ser mulher. Até hoje isso existe, porém não é tão frequente. O comportamento feminino reflete as conquistas das mulheres nos últimos anos e muitas mulheres na história se posicionaram e batalharam para ocupar posições que antes pertenciam aos homens e obter seus direitos, mostrando a importância delas na sociedade. Já avançamos significativamente quanto a igualdade de gênero.

3ª Pergunta: Eu acredito que pode ser sim, mas não só por isso. Até hoje eu sou questionada sobre o que eu farei quando eu engravidar e se eu terei coragem de voltar a trabalhar embarcada e “abandonar o meu filho” (o que é um absurdo de se ouvir). Vi várias empresas no passado reagirem negativamente quanto a contratação da força de trabalho feminina justamente pelo motivo de que a mulher engravida e uma profissional em casa em licença a maternidade é um prejuízo a companhia. Conhecemos várias histórias de profissionais mercantes mulheres que não tiveram o amparo das empresas marítimas quando engravidaram e isso é muito triste de se ver. Infelizmente ainda tem pessoas e empresas que pensam assim e eu penso que os Acordos Coletivos de trabalho devem reforçar e garantir direitos as gestantes, assunto este que nunca é tratado nos Acordos de fato. Tenho amigas de profissão que se tornaram mães e que trabalham embarcadas até hoje, assim como existem outras tantas que engravidaram e nunca mais voltaram. Existe esse paradigma de que as mulheres são mais suscetíveis a desistirem da carreira no mar. Mas eu falo por mim, tenho dois sonhos, o de seguir a carreira na marinha mercante e o de ser mãe um dia e um não exclui o outro.

4ª Pergunta: Nós mulheres estamos invadindo o mercado marítimo, só no navio que eu trabalho, somos 4 Oficiais e mais 7 profissionais entre Rádio Operadoras, Marinheira de convés, Enfermeira, Comissária e Taifeiras, num universo de 80-90 pessoas. Ainda é pouco, mas muito mais do que quando eu comecei em 2005 (já trabalhei diversas vezes e por muito tempo em embarcações onde eu era a única mulher a bordo). A vida a bordo não é fácil, a convivência nem sempre é tranquila, mas a presença da mulher tem cada vez mais garantido essa igualdade e a mudança de pensamento e de comportamento. Acho que o respeito deve prevalecer em todo local de trabalho.

5ª Pergunta: Minha mensagem de incentivo às novas gerações de mulheres mercantes é: Sejam autênticas, confiantes e livres em sua carreira profissional. E viva tudo isso com todo o seu coração. Orgulhem-se da mulher incrível que vocês são e da profissão maravilhosa que escolheram.

Um abraço a todos!

A equipe do Jornal Pelicano agradece a todas as entrevistadas que, de forma bem espontânea, responderam a cada uma das perguntas, cooperando bastante para a nossa matéria.

O JP espera ter ajudado na discussão do tema, uma vez que é uma questão global a ser enfrentada por todos nós, alunos da EFOMM, quando embarcados.

Texto:

Aluno do Primeiro Ano Gabriel Ferreira

Aluno do Primeiro Ano Matheus Martins

Aluno do Primeiro Ano Da Costa