Continuação da Entrevista… Caso ainda não tenha lido a Parte I, leia antes de continuar a leitura.
JP: Como o senhor atribui a importância da Marinha do Brasil na formação de nós oficiais Mercantes?
Fábio: A formação cívica que a Marinha do Brasil proporciona para um jovem da sua idade, assim como eu que quando entrei na EMMRJ com 18 anos, fui tratado com disciplina na base da continência, posição de sentido e tudo mais… Já fiquei uma hora e meia em posição de descansar durante uma audiência em um calor de 40º, eu era o aluno ronda ou chefe de dia. Pois bem, hoje, que eu tenho 79 anos e vou responder a sua pergunta, eu acho que essa formação disciplinar que a Marinha impõe aos jovens, você pode até não concordar agora, mas, quando você tiver a minha idade, você vai agradecer. Você vai ser um cidadão diferente da maioria dos brasileiros, você será uma pessoa diferente para melhor, graças a formação que a Marinha do Brasil está te dando hoje, essa é minha opinião sincera. Então, se você me perguntar eu vou responder que nossa sociedade precisa dessa educação, no Brasil precisa mais que na Inglaterra, na França ou na Noruega. No Brasil, os alunos que estão matriculado no CIAGA, são jovens privilegiados, porque essa disciplina, ordem unida, ginástica, alvorada e toda essa rotina é altamente saudável para os dias futuros quando você for um homem de vinte e cinco, trinta e cinco ou quarenta anos, isso vai refletir positivamente no seu dia a dia. Agora, a formação técnica profissional que a Marinha oferece no CIAGA eu acho que precisa ser aprimorada, vocês vão chegar abordo e vão ter que aprender muitas coisas no dia a dia, haja vista essa necessidade de maior eficiência no ensino. Eu diria que o ensino de vocês tem uns pequenos defeitos e grandes qualidades. Os defeitos dão para passar e as qualidades eu acho que são boas e vocês vão perceber isso lá na frente. Então tem que dizer para os seus jovens colegas que tem que “papirar” mais, estudar muito, para não perder, porque o curso é muito bom.
“VOcê será uma pessoa diferente para melhor, graças a formação que a marinha do brasil está te dando hoje”
JP: Como era a navegação antigamente com uma tecnologia menos desenvolvida e como é hoje com grandes avanços tecnológicos?
Fábio: Quando eu cheguei à praticagem, ainda não existia o VHF no Brasil. Já começava a aparecer nos primeiros navios alemães, nos ingleses e americanos, provavelmente nestes já tivesse. Eu entrei em 1969, eu acho que o primeiro VHF que eu coloquei a mão para poder manobrar um navio foi lá pelos anos de 74/75. Até então, eu manobrava aqueles navios todos com código sonoro. Era com aquele apito de boca, de juiz de futebol, e o apito do navio. Esse código sonoro era o código binário, só dizia “sim” ou “não”. Quando era um único apito longo, era “não”, para parar de puxar ou parar de empurrar. E, quando eram dois longos apitos, era “sim”, para começar a puxar ou começar a empurrar. Foi só isso com que eu exerci a minha profissão durante alguns anos. Quando chegou o primeiro rádio VHF, eu pensei “estou na lua”, pois com o VHF eu posso dizer “Mestre, empurre com apenas 30% da potência”, antes eu não podia fazer isso. Chegava a ser engraçado, manobrei dezenas de navios desse jeito. Sem falar que não tinha defensa para atracar no cais, tínhamos que pendurar uns pneus… Mas, também, os navios eram muito menores do que são hoje. O maior tinha duzentos metros de comprimento, e era um ou outro que aparecia de três em três meses. A maioria tinha algo entre e vinte, sessenta ou noventa metros. Eram todos navios pequenos. E, hoje, nós temos navios de trezentos e trinta e cinco metros, com quarenta e oito de largura e quatorze de calado. Dentro desse teatro de alterações, a tecnologia veio para ajudar. Tanto a área da navegação, quanto a área da praticagem, quanto na área da alteração de carga. Porque hoje um container pode levar qualquer tipo de carga no planeta, não há uma única carga que não possa ser transportada dentro de um container. Eu cheguei a manobrar navio da Segunda Guerra Mundial, aqueles ‘liberty’ que os americanos faziam (e que ajudaram a vencer a guerra, conseguiam produzir os navios com mais velocidade que os alemães bombardeavam os navios dos comboios que iam abastecer a Europa). Foram sagazes os americanos que inventaram esses navios grandes, com porões espaçosos para caber bastante carga, além de ser um tipo de navio barato, com máquinas simples de não muita velocidade (máquina alternativa a vapor). Pois bem, eu cheguei em 1969, na praticagem de Santos, tive a oportunidade de manobrar alguns navios Liberty que foram fabricados na década de 40 para a guerra e que estavam até então viajando! Para você ver a qualidade desses navios. Os anos passaram, e então começaram a surgir navios com bow thrusters, com leme Becker, leme schilling, estabilizadores, logo depois veio o GPS e hoje tem a carta eletrônica. Mudou muito do meu tempo pra cá, hoje todos os navios têm que ser equipados com a carta eletrônica, assim vão deixar de existir as cartas de papel, com tristeza eu digo isso a você. O futuro já chegou e vocês têm de se adaptar a ele.
JP: Para nós, alunos, futuros profissionais da Marinha Mercante, quais são as características e qualidades que o senhor julga importante para nós sermos bem sucedidos como homens e mulheres do mar?
Fábio: Bom, primeira coisa: tem que gostar do mar, tem que gostar de navio. Se o jovem está fazendo uma coisa sem gostar, terá problemas. Porque é uma profissão sui generis (de característica própria), diferente de todas as demais profissões, ela tem esse pré-requisito que eu acho muito importante para que você possa exercer e ser feliz. Tem que ter uma visão mais pragmática com relação à família, tem que superar a saudade. Outra coisa que eu acho importantíssimo para se ter uma vida longa no mar é falar inglês, tem que saber, quem vive no mar tem que saber falar inglês. Não importa se não for sair da bandeira brasileira, tem que saber, vai precisar, vai continuar tendo muito contato com estrangeiro. Se um navio voltar a ter longo curso, vai atracar num porto estrangeiro, e vai precisar do inglês para ter contato com as autoridades locais. Então, gostar da profissão, gostar do mar, gostar de navio, falar inglês e se adaptar à rotina de bordo que é diferente de todas as rotinas em terra. Se você tem amor ao que está fazendo, vai ser muito feliz. Se não tiver, eu aconselho a abandonar porque pode afetar até sua saúde. Tem pessoas que não se adaptam à vida no mar, ficam insatisfeitas, com muita saudade… Não pode, tem que gostar do que faz. No meu caso, eu gostava do navio e gostava da família. Aí, mais para frente, depois de alguns anos, eu comecei a ver que precisava dar mais assistência à família, foi quando eu procurei ser prático. Foi uma forma facilitada de ganhar dinheiro em pouco tempo e continuar tocando a vida.
JP: E, por outro lado, Fábio, essas condições indispensáveis que o senhor julga que nós devemos ter, o senhor também encontrou dificuldades na sua formação profissional, ao longo da carreira? E como o senhor fez para superá-la?
Fábio: A maior dificuldade que tive foi o choque de gerações, porque quando eu cheguei na Marinha Mercante, não existia comandante jovem. A maioria tinha mais de sessenta e cinco anos, e eu cheguei a bordo com vinte e poucos. O comandante falava: “Não toque no radar sem eu chegar no passadiço”. Essa foi a maior dificuldade, mas fora isso, uma tempestade aqui, um mau tempo lá… Um colega chato, coisas pequenas que não dá nem para lembrar muito. Mas essa diferença de idades entres os comandantes e mim tornou um pouco mais difícil a minha rotina. Hoje os comandantes são mais joviais a hierarquia a bordo está mais atenuada. Mas para ter uma ideia eu entrei e sai da Marinha Mercante e durante esses oito anos eu nunca cumpri um quarto de navegação que pudesse sentar, eu nunca me sentei num passadiço nesses anos em que trabalhei na Marinha Mercante, era proibido. Tinha que ficando durante todo o quarto em pé. E hoje os passadiços do navios tem poltronas super confortáveis, e naquele tempo chamávamos de cadeira de caveira.
JP: A próxima pergunta é mais voltada para área tem atuado. Considerando que o senhor ainda desempenha esse papel de Prático nos portos já há mais de quarenta anos, como definiria a importância da praticagem no Brasil? E sobre os navios, especificamente, se existe algum que o senhor prefira manobrar, se algum é mais difícil?
Fábio: Os navios que eu mais gosto de manobrar são os de container por razões óbvias. Têm muita potência, são navios muito bem projetados pra ter velocidade, pra ter bom desempenho. São navios com lemes muito grandes e rápidos, de máquinas poderosas. Manobrar um navio desses é uma coisa maravilhosa, é uma delícia, uma coisa muito boa e segura. A tecnologia veio para ajudar. E os que eu menos gosto de manobrar, porque são navios muito obsoletos, são os navios daquela classe Neusa e Norma. São aqueles abastecedores da Petrobras. E quanto maior a velocidade, mais efetividade de manobra você tem, só que num ambiente portuário, nem sempre você pode imprimir grandes velocidades. No porto como Santos por exemplo, não se pode passar de nove nós. E sobre a importância da praticagem do Brasil eu acho que tem contribuído mais do que ela é reconhecida pelas autoridades. O trabalho dos práticos tem contribuído, por exemplo aqui no porto de Santos, para os recordes de carga que são vencidos aqui todo o ano tem muito a contribuição da pró atividade da praticagem daqui de Santos. Contudo, a praticagem de Santos é uma praticagem fora do padrão, é um ponto fora da curva, ela é uma ilha de excelência e organização. Foi a primeira praticagem nas três Américas que obteve a certificação ISO de qualidade. Depois de Santos a praticagem seguinte que conseguiu essa certificação foi a de Nova York, em seguida foi a praticagem de Vitória e nenhuma mais. Pois é uma certificação de excelência e difícil de ser conquistada. Nós aqui em Santos possuímos uma intensa pró atividade e não deixamos que o problema aconteça. Nossos práticos estão sempre sendo atualizados com cursos de aperfeiçoamento de manobras no exterior em países como França e Estados Unidos. Atualmente foram mandados práticos para Nova Orleans nos E.U. Aonde há um centro de aperfeiçoamento muito bom. Tal necessidade surgiu por conta do interesse de armadores estarem querendo trazer para o Brasil navios com mais ou menos 360m de comprimento e 50m de boca. Portanto, o papel da praticagem para o aperfeiçoamento dos portos brasileiros tem sido substancial.
JP: Como o senhor analisa o nosso mercado de trabalho no futuro daqui a alguns anos ?
Fábio: Eu acho que não é muito bom. Por isso eu insisto muito, muito, muito na necessidade de vocês estudarem inglês. Vou te dizer o seguinte: de um modo geral os armadores internacionais nem procuram brasileiros, não gostam muito. Porém depois que se aproximam dos brasileiros, podem perceber os oficiais de altíssima qualidade que somos, e então eles ficam apaixonados, porque o brasileiro tem boa índole, ele é alegre, quando ele pega um brasileiro que fala bem inglês, que domina aquela profissão dele com competência, aí joga de lado a arrogância.
Respondendo de forma mais objetiva a sua pergunta: eu acho que a Marinha Mercante brasileira não tem futuro nenhum no longo curso. o longo curso da Marinha nacional acredito que não voltará a ser como um dia foi antes. Agora, por quê? Porque o Brasil impõe muita norma, muita regra, há muita burocracia para os armadores brasileiros. Vejo um grande futuro na Marinha Mercante internacional, porém, a brasileira não apresenta possível desenvolvimento, a menos que estejamos tratando da cabotagem e da marinha offshore, as quais apresentam possível crescimento.
JP: E o que o senhor nos aconselha para vencermos essas dificuldades ?
Fábio: Eu diria para vocês aprenderem inglês muito bem. O dia que vocês forem fluentes no inglês, conseguirem entender, falar, conversar, se expressar, escrever, ou seja, conseguir ter esses atributos a bordo, vocês vão começar a ter oportunidades lá fora. A primeira coisa que o armador quer saber é se o cara é fluente em inglês. A navegação perde importância, a matemática perde importância e o conhecimento do inglês prevalece. Então eu vou dar o mais importante conselho para todos vocês, podem disseminar essa informação, do seu Fabio Fontes, prático de Santos. Aprendam o inglês se quiserem ter um lugar ao sol no transporte marítimo internacional.
“Aprendam o inglês se quiserem ter um lugar ao sol no transporte marítimo internacional!”
JP: O senhor tem algum hobbie ?
Fábio: Gosto muito de fotografia, agora o meu hobbie mais recente é um drone, tenho feito muitas fotos aéreas com ele. Mas meu hobbie principal é a minha profissão de Oficial de Náutica, e agora Prático, que já vou caminhando para 49 anos de atuação.
